sexta-feira, 30 de abril de 2010

Mais detalhes do CTA brasileiro no acidente da Gol voo 1907

Aqui descrevo informações mais detalhadas o sistema de Controle de Tráfego Aéreo brasileiro que foi duramente criticado, sem nenhum fundamento, no episódio do acidente da Gol voo 1907, e completa o post Análise detalhada da mudança automática de níveis no sistema do CTA.

Na ilustração abaixo, se vê como é uma imagem do radar (etiqueta) e da fita (strip) de acompanhamento de um voo. Alguns centros de controle de tráfego ainda mantêm estas strips em papel. No Brasil, estas strips passaram por um processo de migração para eletrônicas.
O dado que é apresentado do lado direito da etiqueta (Nivel Autorizado/CFL) tem origem na strip para o ponto do voo onde se encontra a aeronave. Como já expliquei várias vezes, os níveis de voo são planejados com antecedência e as autorizações são emitidas à medida que o voo se desenrola. Chama-lo de “NÍVEL AUTORIZADO/CFL” pode levar a algumas conclusões equivocadas, porque ele pode não ter sido comunicado à tripulação simplesmente porque ainda não chegou o momento adequado. Não é possível, por exemplo, autorizar no momento da partida da aeronave, em um voo complexo todos os níveis de voo que irão ocorrer futuramente. O Legacy recebeu uma autorização usual, como ocorre em todos os voos do mundo, uma autorização para o nível inicial do voo (FL370). À medida que ele fosse passando pelos pontos onde haveria mudança de altitude, era esperado que ele recebesse novas autorizações para as mudanças de níveis, ou até mesmo que o próprio piloto a solicitasse. Não é porque a aeronave não recebeu a autorização para mudar de nível, que o nível que será autorizado deva ser alterado. Por exemplo, não faz nenhum sentido alterar os níveis CFL de toda a strip para 370 simplesmente porque em S.José dos Campos a torre de controle não emitiu uma autorização completa. Imaginem que a strip passasse a ser toda preenchida com FL370; como o controlador saberia que em Brasília deveria conduzir a aeronave a descer para FL370?

Para vocês se convencerem do que eu estou afirmando está correto, vejam abaixo a etiqueta do avião TU154M que em 2002, em um voo de Moscou a Barcelona se chocou com um Boeing da DHL perto da cidade alemã de Ueberlingen, na região do Lago Constância. A região estava sob o controle do centro de Zurique. Para começar, vejam que a strip contém muito menos informação do que a strip do controle brasileiro.
Era uma situação semelhante, em que o TU154M tinha uma mudança de altitude programada em Trasadingen de FL360 para FL350 às 21:42. O acidente ocorreu as 21:35. A strip mostra 350, a autorização que deveria ser emitida às 21:42, embora o TU154M nunca tivesse recebido uma autorização para descer em Trasadingen. Na verdade o acidente se deu por motivos não diretamente associados a isto, mas por problemas de resolução de conflitos não percebidos a tempo e tratamento dos avisos do sistema anti-colisão, quando ambas as aeronaves estavam em FL360, antes de Trasadingen. Ou seja, fica claro que uma strip no sistema europeu em 2002 não era alterada porque a aeronave não teria recebido esta autorização; não faria nenhum sentido que assim o fosse. A strip serve justamente para isto, para indicar ao controlador que deve solicitar a mudança de altitude da aeronave. Ou seja, a strip não indica o nível que foi (passado) autorizado; ela indica o nível que será (presente e futuro) autorizado. Por outro lado, a strip também não é necessariamente o plano requisitado. O plano de voo requisitado para o TU154M, por exemplo, foi:
O plano requisitado previa um único nivel (FL360). O controle de tráfego tratou o plano requisitado, alterando o nível para FL350 depois de Trasadingen, porque “the AIP Switzerland states that odd level numbers are to be used for the intended flight route”. Ou seja, em nenhum momento o TU154M requisitou FL350 e em nenhum momento ele foi autorizado a voar em FL350, entretanto a strip mostrava FL350. Não porque ele tivesse sido requisitado, mas porque seria este o nível que seria autorizado (futuro) quando a aeronave estivesse em Trasadingen e porque assim o determinou o CTA.

Portanto, a análise que se faz sobre a autorização que o Legacy recebeu em S.José dos Campos, de que ela não especificou um limite ou foi incompleta não faz sentido algum. É assim que são feitas em todo o mundo, mesmo que o plano de voo contenha mudanças de altitude na sua rota. Em segundo lugar, não faz nenhum sentido que a strip seja alterada para o nivel autorizado verbalmente para a tripulação, pois isto coloca em risco a segurança do voo ao não indicar o planejamento do CTA para o voo. E mais, não é isto que é feito em todo o mundo como pode ser comprovado pela strip do acidente em Ueberlingen (lembrando-se novamente que não foi isto que provocou o acidente en Ueberlinger).

Agora vejamos uma etiqueta de um voo em uma tela de radar americano, conforme indicado no Instrument Flying Handbook da FAA - Federal Aviation Administration – que controla o tráfego aéreo americano:
Vejam a indicação do voo N1388V. Nem ao menos a indicação do nível autorizado é apresentada, ao contrário do “ineficiente” sistema brasileiro em que esta informação está na etiqueta. Agora, vejam na imagem da tela abaixo a etiqueta de uma aeronave não provida de transponder (untracked target, nonselect code mode C).
Obviamente é impossível controlar o voo nesta situação; não se sabe nada dele, o voo não está identificado, somente se sabe que há um avião lá.

Agora vejam a seqüência de telas acompanhando o voo do Legacy:
Às 18:55 o Legacy passa por Brasília, e a etiqueta passa a apresentar 370=360. Esta era a indicação para o controlador entrar em contato com o Legacy e solicitar que descesse para FL360. Ela não significa que o Legacy tenha recebido (passado) uma autorização para FL360, mas sim que ele deve receber (presente) uma autorização para FL360. Nem significa que isto deve ser feito imediatamente. Ao seu critério, o controlador pode fazer a mudança quando julgar conveniente. Às 19:02 o transponder é desligado, passando a apresentar a etiqueta 370Z360. Nestes 7 minutos, até onde se sabe, o controlador não percebeu estas indicações, pois estaria atento a outras aeronaves em procedimentos de decolagem e aproximação. Isto é uma situação absolutamente normal; o controlador não precisa acompanhar a cada segundo uma aeronave em rota em voo estabilizado sem nenhuma outra aeronave na sua rota. Qualquer um pode imaginar que a atenção do controlador pode estar voltada para outras aeronaves em situações em que a  sua intervenção é mais necessária. Em seguida ao desligamento do transponder, a etiqueta passou a apresentar:
Ou seja, o Legacy some do radar! O acidente vai ocorrer somente às 19:56, sem que o Legacy esteja aparecendo na tela do radar. Isto mostra a ridícula análise do NTSB do sistema de controle de tráfego aéreo, subsidiada pela fraca análise do CENIPA que considerou o lado direito da etiqueta como "CFL = nível autorizado" (passado), e não como nível que deve ser autorizado (presente). Ou seja, o sistema se comportou como teria se comportado qualquer sistema em qualquer lugar do mundo.

Este acidente teve como causa indiscutível o desligamento inadvertido do transponder pela tripulação e o erro do CTA foi não ter retomado as comunicações com o Legacy por não perceber uma inusitada situação de risco de uma aeronave estar voado na “contramão”. Nunca antes na história da aviação uma aeronave havia trafegado na contramão; isto significa hoje em dia, com a precisão da navegação aérea, um desastre certo. Qualquer piloto com um mínimo de consciência situacional saberia disto.

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