segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Guarulhos não é Newark

Depois de alguns comentários que fizeram neste blog, é possível perceber porque muitas pessoas ainda têm dificuldades para compreender as circunstâncias do acidente entre o Boeing da Gol e o Legacy. A questão chave deste acidente, em minha opinião, está na completa ausência de consciência situacional dos pilotos do Legacy.

"A consciência situacional pode ser definida como: a percepção precisa dos fatores e condições que afetam uma aeronave e sua tripulação durante um período determinado de tempo. De maneira simplificada, a consciência situacional significa estar ciente do que se passa ao seu redor e com o pensamento à frente da aeronave. É a perfeita sintonia entre a situação percebida pela tripulação e a situação real. Esta percepção é afetada por diversos fatores, tais como: estresse, inexperiência, conflito interpessoal, expectativas, fadiga, desinteresse, distração, carga de trabalho e complacência" (CENIPA).

Percebemos pelos comentários que são feitos sobre este acidente que a defesa dos pilotos e a defesa que Joe Sharkey faz deles está sempre baseada em que o controle do espaço aéreo brasileiro é deficiente e não segue as normas internacionais. Um dos colaboradores do Sharkey chegou a dar-me a sugestão de visitar o controle do tráfego aéreo americano ou europeu, para ai sim eu ser capaz de compreender o que é um eficiente controle de tráfego aéreo e de primeiro mundo. Não pode haver nada mais absurdo que este comentário. Estes pilotos, estas pessoas que fazem estes comentários, e Joe Sharkey, vivem em seus mundinhos pequenos imaginando que o mundo deveria ser a imagem e semelhança dos seus mundos privados. Estas pessoas não compreendem que o mundo não é só os Estados Unidos e Europa. Para estas pessoas o “resto” do mundo é o buraco do coelho, é o mundo marginal, é o mundo para se fazer chacota. Não são capazes de compreender que o espaço aéreo do mundo e em especial do terceiro mundo não é, e nunca será, pelo menos nas próximas décadas, como o do “primeiro mundo”. Antes disso, teremos que resolver nossos problemas de saúde, educação, emprego e centenas de outros muito mais graves e que matam milhões de pessoas a cada ano. Se um dia o tráfego aéreo brasileiro for melhor, o do primeiro mundo será melhor ainda. Se os aeroportos forem melhores, os do primeiro mundo serão melhores ainda. Só há uma alternativa: não haver primeiro mundo e terceiro mundo, o que parece pouco provável nas próximas décadas. Se tivermos que priorizar a melhora das coisas por aqui, espero que não escolham o tráfego aéreo.

Enquanto a segurança aérea não melhorar, é preciso que as pessoas que têm em suas mãos vidas humanas tenham a consciência situacional que estão em outro país, que a língua é outra, que os hábitos culturais são outros e que a infra-estrutura aéreo-portuária é outra. Ninguém vai para a selva sem uma faca, água e um kit de sobrevivência. Ninguém vai encontrar um McDonald’s na beira do rio Xingu. Quem não souber, é bem provável que mate ou morra.

Exageros meus à parte, quem viaja ao Brasil ou qualquer outro pais do terceiro mundo, precisa estar preparado e consciente. Precisa saber que o controlador da torre de S.José há 32 anos libera os vôos sem completar a frase com "as filed"; que na Amazônia pode haver poucas freqüências de rádio disponíveis; que o controlador de vôo não sabe pronunciar “Poços de Caldas” corretamente em inglês; que aqui a aerovia que vai de Brasília a Manaus tem duplo sentido; que se o seu transponder desligar, ninguém vai te avisar. Ou seja, precisa conhecer a trilha antes de entrar na selva. É uma obrigação de qualquer um que tenha vidas em suas mãos. É ter Prudência, ou "a virtude que faz prever e procura evitar as inconveniências e os perigos; cautela; precaução; calma; ponderação; sensatez; paciência ao tratar de assunto delicado ou difícil" (HOUAISS). Não podemos esquecer que o homicídio culposo pode ser caracterizado pela "falta de cuidado objetivo do agente, imprudência, imperícia ou negligência" (CÓDIGO PENAL).

Quem não sabe disso pode matar 154 pessoas inocentes, ... ou perder a vida.

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